Carlos Brasil, nasceu na freguesia das Cinco Ribeiras, ilha Terceira (Açores), a 19 de Setembro de 1900, no seio de uma família profundamente crente e participante a todas as manifestações religiosas do curato — Cinco Ribeiras ainda não era freguesia — já nessa altura consagrado a Nossa Senhora do Pilar.
Filho de lavradores, a sua meninice e juventude foram embaladas pela lide quotidiana nos campos : lavra, semeadura, colheita, pastagem do gado, vindima, e todos os outros trabalhos fastidiosos que alimentam a vida campestre.
Porque seu pai precisava de todos os “braços” úteis, Carlos não frequentou a escola, que no seu tempo não era obrigatória e por isso mesmo era analfabeto, sabendo apenas assinar, com muito custo, o seu nome.
Depois do serviço militar — obrigatório, ao contrário da escola — o jovem açoreano desejou aprender o ofício de carpinteiro, do qual guardou, toda a sua vida, os gestos e as aptidões que lhe eram próprias : “fabricava” ele mesmo, mesas e cadeiras, bancos e armários, quando estes eram necessários no seu lar.
Depois do serviço militar, logo após a guerra de 1914-1918, Carlos conheceu Cecília, uma jovem da mesma freguesia com a qual casou.
O casal sofreu de falta de meios suficientes para viver tranquilamente, mas mesmo assim, “fazendo das tripas coração” — como se diz lá na terra —, foram vivendo com “a graça de Deus” e na companhia dos filhos que logo foram aparecendo, quase anualmente.
Mas a carpintaria não chegava para o sustento da família, por isso mesmo Carlos voltou-se de novo para a terra e “montou uma lavoura”, alugando mesmo alguns terrenos dos quais colhia trigo, milho, batatas, feijão, assim como melões, melancias e uvas, que vendidos depois, permitiam, mesmo se ainda com dificuldades, melhor vida para a família que em breve contava quatro filhos e uma filha.
Carlos era, devemos dizer, um pouco aventureiro e, para angariar fundos que permitissem uma vida melhor, ele não hesitava em fazer negócios, alguns dos quais eram por vezes desastrosos, mas ele gostava de “negociar”, de vender e de comprar, vacas, sobretudo, mas também porcos e galinhas...
Tudo parecia correr bem, mesmo se, de vez em quando algumas dificuldades surgiam ainda, quando, talvez para o experimentar, Deus permitiu que Cecília — que sempre se mostrou uma esposa fiel e dedicada, assim como mãe extremosa e carinhosa — adoecesse e que, passados poucos meses, voltasse para a Mansão celeste, deixando Carlos, se marido, com cinco filhos ainda novos a seu cargo.
A prova foi extremamente dolorosa, mas Carlos tinha de reagir e procurar alguém que aceitasse de se ocupar dos filhos que o Senhor lhe tinha dado e que agora se encontravam sem o carinho e o amor da mãe.
Passados os meses usuais, encontrou em Maria — uma jovem da mesma freguesia — a mulher capaz de ocupar o lugar deixado vazio pelo óbito de Cecília.
Maria, fez o que pôde, sabendo que nenhuma madrasta pode ocupar o lugar deixado pela mãe que Deus chamou. Ela foi no entanto aceite pelos filhos de Carlos e respeitada por estes, como se fosse mãe verdadeira.
Deste segundo matrimónio nasceram mais três filhos, dos quais um só sobreviveu.
A vida de Carlos, continuou a mesma : lide nos campos e negócios. A carpintaria, não tendo qualquer sucesso, deixou de fazer parte das suas diversas profissões.
Uma coisa portanto nunca mudou : a vida espiritual.
Mesmo se o golpe fora duro, após o falecimento de Cecília, Carlos nunca se revoltou e aceitou com humildade e confiança aquilo que Deus permitia. Ele não sabia ler nem escrever, mas conhecia a história de Job, por tê-la ouvido ler por um de seus filhos : ele sabia pois que Deus é o único a saber tirar o bem do mal, qualquer que este seja.
Nós não podemos afirmar, mas estamos convencidos que Carlos sempre disse ao Senhor : “Que a vossa vontade seja feita”.
Nos momentos das festas da Padroeira, ele estava sempre pronto a participar a todos os trabalhos de embelezamento das ruas onde passaria a processão, chegando mesmo a fazer, diante de sua casa, arcos muito engalanados, rodeados de bandeirinhas multicores. Também se proponha, em caso de necessidade, de transportar, com três outros compatrícios, um dos andores da procissão que nessa época percorria quase toda a freguesia.
Habitado por um profundo sentimento de amor familiar, recolheu em sua casa, durante alguns anos, Maria do Rosário, sua mãe, a quando da morte de seu pai, António Brasil.
Esta anciã, muito devota e temente a Deus, lia, todos os dias, o Livro das Horas e praticava diversas devoções. Faleceu quase centenária — 99 anos — continuando a enfiar o fio na agulha sem a ajuda de óculos, o que causava a admiração de todos os que a conheciam.
Carlos, quanto a ele, continuava nas suas lides habituais, até que a idade o obrigou ao repouso.
A partir desse momento, visto que não tinha obrigações laborais que o impedissem, começou a assistir à Missa todos os dias, recebendo quotidianamente a Sagrada Comunhão, que passou a ser o seu alimento favorito, sobretudo para sua alma que desde então o Senhor começou a “trabalhar” mais fortemente, como se quisesse precisar dele para outras lides mais importantes : a salvação das almas.
O antigo lavrador dos campos ia-se tornando cada vez mais em lavrador de almas e, se antes era já muito respeitado por todos, como homem de palavra e extremamente íntegro, desde então era visto como um “homem de Deus”, aquele que atrai a si, não só as crianças mas também os mais idosos : Carlos era respeitado porque inspirava respeito e respirava Deus.
Conta-se que, quando todas as manhãs ia à Missa, levava os bolsos cheios de rebuçados que à saída da igreja distribuía às crianças que, sabendo o que os esperava, logo o rodeavam, saltitando alegres à sua volta.
— O Ti Carlos, um rebuçado...
— O Ti Carlos, eu ainda não tive nenhum...
E sorrindo a todos, a todos procurava agradar e fazer prazer. Não tinha dito Jesus : “Deixai vir a mim as criancinhas” ?...
Não contente de consagrar a manhã ao Senhor, Carlos, quase todos os dias ia fazer — durante a tarde — ao menos uma “estação” à Igreja, diante do Santíssimo Sacramento, braços abertos e olhos fixos na hóstia que ele não via mas imaginava.
Foi numa dessas ocasiões que aconteceu o que ainda nunca foi dito, mas que é verídico, e que, visto o amor que ele tinha para com o Santíssimo Sacramento e a devoção indefectível ao Sagrado Coração de Jesus.
Nós não conhecemos nem a data — pensamos que tenha sido no princípio dos anos setenta — nem os termos exactos do encontro que vamos descrever e que nos foi comunicado por Maria, segunda esposa de Carlos.
Durante uma das “estações” ao Santíssimo Sacramento, Carlos viu-se envolvido por uma grande claridade e, no meio desta apareceu-lhe o Sagrado Coração de Jesus.
Que lhe disse ou o que lhe pediu o Senhor, não sabemos, mas o certo é que Carlos se ofereceu como vítima, aceitando corajosamente de sofrer pela salvação dos pecadores, entre os quais, provavelmente estaria contado um dos seus filhos que nessa ocasião se encontrava completamente afastado da prática religiosa.
Uma só pessoa foi confidente deste facto sobrenatural: sua esposa, Maria.
Disse-nos esta que diversas vezes, em casa, quando Carlos já se encontrava acamado para sempre, este fenómeno voltou a verificar-se.
Aqueles que assistiram à sua morte, ocorrida a 3 de Maio de 1979, testemunharam que ele falecera olhando fixamente, parecendo sorrir, o ângulo do quarto onde habitualmente via o celeste visitante.
A quando da cerimónia religiosa, na igreja paroquial, o sacerdote que celebrou a Missa, não hesitou um instante para anunciar, categoricamente a todos os assistente — a igreja estava cheia : “Estamos na presença de um santo”.
Nenhuma tentativa foi feita — e certamente nunca será — em vista da beatificação e canonização de Carlos Brasil, porque ele sempre foi indiferente a todo e qualquer elogio, a toda e qualquer manifestação ou louvor: Carlos era humilde e humildemente morreu, deixando para a posteridade a imagem de um homem profundamente cristão, bom filho, bom marido e bom pai.
Como acima dissemos, Carlos não sabia nem escrever nem ler, por isso mesmo não deixou quaisquer escritos. Dele temos muitas notas e muitas recordações. Dessas notas tiramos matéria para comentários de certas passagens dos Evangelhos que ele, depois de os ouvir ler, explicava, à sua maneira : simplesmente, mas profundamente.
Alguns desses comentários podem parecer rudes, demasiado críticos, mas Carlos, homem do campo, dizia, respeitosamente aquilo que pensava sobre os diversos assuntos relacionados com o Evangelho e com a vida da Igreja.
Quando alguém lhe dizia : “O Ti Carlos, isso é duro, até admira o senhor dizer uma coisa dessas...” a sua resposta era invariável : “A verdade é para ser dita, que gostem ou não ; eu não tenho teias de aranha na língua... e, se quiserem que tudo siga em frente, só pode ser assim com a verdade, que ela agrade ou não!...”
E dava exemplos tirados dos Evangelhos : “Lembrem-se do que Jesus disse aos fariseus, chamando-os sepulcros caiados de branco... ; o que ele disse aos mesmos quando eles queriam apedrejar a mulher adúltera... ; a sua resposta ao jovem rico e, assim de seguida... Nosso Senhor disse sempre a verdade, não temendo dizê-la até à morte... Falar assim não é dizer mal, falar assim é dizer a verdade, é amar e, eu amo Nosso Senhor e a sua Igreja, por isso me custa muito calar-me quando vejo coisas que não estão certas...”
Carlos sempre assim foi : íntegro e amigo da verdade.
Aqui fica pois, para satisfazer a curiosidade de alguns, o comentário que podíamos fazer sobre Carlos Brasil cujo nome aparece como o autor de certos comentários litúrgicos aqui apresentados.
Tenhamos sempre um pensamento amigo e meigo, para com este “homem de Deus” e recorramos a ele, quando desejamos que a verdade seja vitoriosa, tanto nas coisas de Deus, como no nosso dia a dia.
Afonso Rocha