terça-feira, setembro 17, 2019

AS GRANDES DÚVIDAS


Não sei como, não sei se aguentarei a minha vida tão dolorosa e triste. Eu não quero duvidar da protecção do Céu, porque nunca, nunca, nas horas mais amargas e difíceis me faltou o conforto, mas agora, meu Deus, perdoai-me, agora, que tenho a tentação tão viva, tão viva de a eternidade não existir, receio vacilar. É uma luta eu repetir o meu “creio”, é uma luta o pensar que o Céu me espera, é uma luta recordar todas as verdades, porque no meu sentir tudo é uma mentira. Minto-me a mim e aos outros, é falso, falso todo o meu viver. Como triunfar, Senhor? Mesmo no sentimento da mentira hei-de acreditar e confiar. Espero, espero em Vós! Parece-me que, de cada vez, o meu coração se torna mais sensível à dor e a todas as coisas que surgem. Eu não devia sofrer pelas calúnias que de mim dizem, como podem acreditar os outros quando eu em nada acredito. Não devia sofrer com as dúvidas que têm de mim, pois se eu mesma as tenho todas, todas!


— Ó Jesus, ó Mãezinha, só Vós me podeis valer. No meio dos meus desânimos, como são profundos os espinhos que me ferem! Todas as coisas me ficam presentes, como se eu as quisesse ver e recordar. Ó Jesus, só Vós sabeis compreender. Perdoai-me todos os meus desfalecimentos; mesmo sem eu querer, recordo-os.
Nasci para a dor; não nasci para mais nada. Quantos segredinhos ocultos, quantas coisas eu não esclareço. O Céu, o Céu tem a visão de tudo. Na minha grande inutilidade, não deixo de oferecer aos meus queridos Amores, causa da minha loucura e para a salvação das almas.
— Oh, se o meu coração falasse, se o meu livro estivesse aberto, nunca, nunca na terra seria terminada a leitura. Que virá mais, Jesus? E quando chegará o meu Céu tão imerecido?
Parece que não posso esperar, não posso esperar mais, não posso sofrer mais. Está pronta a vontade, sempre pronta a dar-se ao Senhor, mas a natureza apavorada não pode, não pode mais. Todos, todos os sofrimentos se vão repetindo em mim. A visão do mundo, a visão das almas causam-me dor infinita. Meu Deus, sou a Vossa vítima.
Por não poder, resumo assim o que se passou em minha alma dou já entrada ao Horto e ao Calvário que eu vivi numa amargura indizível. Sempre a ser a mesma massa da terra, sempre a sentir os meus nervos a desconjuntarem-se e mais ainda uma coisa semelhante, que sofria há anos, a ser comida, lentamente, com a diferença: há anos era o corpo a ser devorado por todos os bichos e aves, e agora é a alma. Custa mais, ainda mais. Meu Deus, meu Deus! Neste sofrimento, nunca fui capaz de repetir o meu “creio”, nem de me recordar de o repetir, tal era o meu martírio.
Por o senhor Abade não estar, estava há quatro dias sem receber Jesus. Perdi tudo e não aguentava a fome de Jesus. Depois de três horas, não sei quantos minutos, Ele veio, deu um pouco de luz à sala do meu peito, levantou-me e docemente me chamou:
— Vem, minha filha, vem, minha filha. Coragem, tem coragem. É o auge da tua dor, para o auge dos vícios. Jesus espreme-te em toda a variedade de prensas para toda a variedade de pecados. Coragem, coragem. Vais-Me agora receber. Tenho tirado mais proveito para as almas das tuas ânsias, da tua pena por não Me receberes, das tuas comunhões espirituais do que se me recebesses sacramentalmente. Confia! Jesus não mente.”
— Ó Jesus, não tive a pena verdadeira. Parece que as minhas lágrimas de saudade não foram verdadeiras. Não sei como vivi. Perdoai-me, perdoai-me.
— Tu és louca, tu és louca, a louca da Eucaristia, a louca das almas. Oh, como és louca! Como a tua loucura alegra o meu Divino coração e o de minha Bendita Mãe, e vai reparando a justiça de meu Pai.
Nesta ocasião, Jesus desapareceu. Abriu-se uma ala de anjos do Céu para o meu quarto. Eles eram tantos que estavam dispostos em duas alas. Do Céu uniam-se e vinham-se separando, formando cá em baixo a largura duma estrada. Batiam todos as suas asinhas brancas e alguns tocavam instrumentos harmoniosos. Por essa estrada entraram três anjos em tamanho natural. O do meio trazia a píxide com Jesus. Os dos lados traziam nas mãos de fora uma vela e as mãos do lado de dentro apanhavam o manto do que conduzia Jesus. Com as palavras que o sacerdote costuma pronunciar ele deu-me a Sagrada Hóstia, e foram recuando até que desapareceram. Os que estavam nas alas tocavam e cantavam:
Glória a Deus na terra e no Céu! Glória a Deus, nosso Rei e Senhor! Glória, glória, glória a Deus, amor, amor, todo o amor! Calvário de prodígios, calvário de dor, calvário de glória e reparação ao Senhor! Glória, glória, glória a Deus, amor, amor, todo o amor.
Todos desapareceram, deixando de se ouvir ao longe as vozes e sons celestes. Abeirou-se Jesus novamente de mim, introduziu-me no coração o tubo e fez passar a gota do Seu Sangue, lentamente:
— Recebe vida, mais vida, minha filha. Recebe conforto para todo o estrago da dor. Vives a minha vida, vives só de mim. Tem coragem. Não te ofereceste tu a Mim por tudo e por todos? És a vítima reparadora de todos os crimes e de toda a variedade de coisas. Fala às almas, porque para elas pelo Céu foste escolhida. É a mais difícil, mas a mais sublime missão. Eu estou contigo. Falo pelos teus lábios. O Divino Espírito Santo em tudo te instrui e ilumina. És amparada por minha Bendita Mãe.
Fala ao mundo. Pede-lhe a sua conversão. Sofre, sustenta o braço de meu Pai. Avisa o mundo do que o espera. Coragem, coragem!”
Desapareceu rapidamente. Fiz-Lhe os meus pedidos, repeti-Lhe muitas vezes o meu “creio” e com a alma mais forte não podia queixar-me de que O não tinha recebido. Voltei à dor, a muita dor, mas mais confortada para a suportar. (Sentimentos da alma: 17 de setembro de 1954)

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