terça-feira, dezembro 24, 2013

ENTREVISTA VIRTUAL

Entrevista de Natal
O segundo aniversário da consagração do mundo ao Coração Imaculado de Maria em 1942 tinha sido comemorado ; pouco tempo se passara depois da festa da Imaculada Conceição...
Alexandrina — o “instrumento” de que se servira o Senhor para essa consagração — estava ali, deitada no seu leito de dor, quando a visitei...

Foi no dia 25 de Dezembro de 1944, no fim da tarde... quase à noite...



Parecia dormitar, visto que as suas pálpebras cobriam quase por completo os seus olhos negros. Aproximei-me, pé ante pé, para a não acordar — pensava eu que dormia — mas logo abriu os olhos, olhou e sorrio, um sorriso que põe o coração em festa, sorriso maviosa e cheio de ternura e carinho...

Quis desculpar-me por incomodá-la, mas fez-me sinal que me sentasse ali, à beira da cama, ao mesmo tempo que o seu dedo indicador direito se posava sobre os seus lábios. Compreendi que rezava e, sem precipitação sentei-me na cadeira que a Deolinda amavelmente me proponha.

Olhei-a demoradamente e, quanto mais a olhava, mais o meu coração parecia galopar, como se quisesse ultrapassar aquela alma simples e pura que falava com Deus; ultrapassá-la, não para chegar primeiro, mas para lhe ir na frente e poder assim melhor admirar aquele rosto que as cores do Paraíso adornavam, aqueles olhos que reflectiam a luz divina, aqueles lábios estáticos que não precisavam de mover-se para falar com o Senhor... Como era bela naquela postura de oração, naquele colóquio com Jesus ou Maria, não sei!...
Depois, como se acordasse dum sonho que a arrebatara, olhou com ternura, sorrio e, com um aceno da cabeça, fez-me sinal que poderia começar a interrogá-la, visto que sabia para o que eu vinha...
— Alexandrina, obrigado por ter aceitado de me receber neste dia de Natal, dia de festa...
— « Os dias de festa são sempre para mim de profunda tristeza! »
Como notasse que fiquei surpreendido, acrescentou:
— « Esforço-me sempre para consolação dos que me rodeiam mostrando-me alegre : a minha alegria é fingida.

Ia fazer um comentário, mas os seus olhos rasos de lágrimas, impediram que lhe dissesse qualquer palavra. Ela, com carinho e doçura, explicou:

— « Fito Jesus, a Mãezinha, elevo o meu pensamento ao Céu e por amor aceito a dor. É por amor que a tristeza para mim é alegria. Não olhando a terra, firmo no Céu, só no Céu, os espinhos são rosas, a dor é doçura. »
Surpreendido ao ouvir tais paradoxos, não resisti e perguntei:

— Mas, na noite de Natal, a noite passada, foi certamente para si uma noite de alegria, uma noite em que Jesus Menino desceu ao seu coração...

— « À meia noite do dia de natal, não falando da noite que me ia na alma, dores agudíssimas pareciam retalhar-me todo o corpo. Não chorava, mas gemia ; só Jesus sabe quanto eu sofria. Principiei a ouvir fogo e repique de sinos. Pedi que me trouxessem umas imagensinhas do Menino Jesus. Colocadas sobre o meu peito queria aquecê-las. O calor que lhe dei não era o que eu queria dar-lhes ; queria queimá-las com fogo de amor. Queria dizer-lhes muitas coisas e não sabia. Estreitei-as ao meu peito docemente e continuei os meus gemidos. — Estou certa que Jesus os aceitou e não ficou triste. Ninguém como Ele via quanto eu sofria ; ninguém como Ele sabe que mesmo gemendo é por amor que gemo e quando mais não posso. »

— E esse seu estado durou toda a noite? Perguntei eu admirado e surpreendido.

— « Não sei os minutos que se passaram, o que sei é que passei a outra vida e ouvi Jesus no meu coração. »

— Viva! Ao menos uma boa notícia: Jesus veio visitá-la... E que lhe disse Ele? Perguntei, cheio de curiosidade.

— “Nasci no presépio do teu coração, minha filha. É o Esposo que vem à sua esposa, é o Rei que vem à sua rainha. Sou Rei do Céu e da terra. Como estou bem aqui, ó rainha do amor. O presépio que Me dás não é áspero como o de Belém, é fofo com as tuas virtudes. No te presépio não sinto os rigores do frio ; sou aquecido com o amor mais puro e abrasado. Tu és a minha estrela, estrela que guias o mundo como outrora guiou os Reims Magos no caminho de Belém. Diz, minha filha a todos os que cuidam de ti, aos que te são queridos, amam e rodeiam que lhes dou abundância das minhas graças, um enchente do meu divino Amor, um lugar reservado em meu divino Coração com a promessa do Céu”.

— E viu mesmo o Menino Jesus, viu o presépio, Nossa Senhora e São José?

A minha curiosidade tinha ares infantis... Eu sentia-me extasiado diante de tanta simplicidade, da tanta humildade e tanta fé...

Alexandrina respondeu:

— « Não vi o Menino Jesus, mas enquanto que Ele me falou estava junto a mim uma grande palmeira de Anjos, centos ou milhares de Anjos, muitos deles com seus instrumentos desciam do alto e rodeavam-me. Tinha graça a pressa com que desciam. No meio deles estava uma grande escada ; de todos os degraus desciam para mim numerosos raios dourados. Eram como setas a penetrarem no meu peito... »

E os olhos negros da Alexandrina pareciam iluminados ainda por aqueles raios de que falava: eles brilhavam como se milhares de estrelas neles se espelhassem.

— E, durante esse tempo, Jesus falava-lhe, perguntei eu, cada vez mais atiçado pela curiosidade.

Ela olhou-me, compreendeu que eu “bebia” as suas palavras, e disse:

— « Jesus dizia-me :

— “São as tuas virtudes, são raios de amor divino. Recebe, é a tua vida”. »

Ao explicar-me o que vira e sentira, Alexandrina parecia sentir-se feliz, pois o seu sorriso era mavioso. Quanto aos seus olhos, fixos em mim, pareciam ler o meu pensamento, descobrir na minha alma os mais profundos recônditos — o que me atemorizava um pouco! —, descortinar a minha curiosidade crescente e, sem que precisasse que algo mais lhe perguntasse, ela continuou:

— « Aqueles raios fortaleceram-me, davam mais luz do que o sol mais brilhante. Vi tudo claramente. Não sei o tempo, mas foi demorada esta visão. Desprendi-me a custo, ia como os que caminham e olham para traz, dando a conhecer que querem alguma coisa. Eu desejava voltar ao mesmo. Não voltei à visão, mas voltei à dor. »

Ao terminar o que acabava de me dizer, pareceu-me aperceber-lhe uma lágrima, como se a recordação desta visão da noite de Natal a tivesse deixado numa grande nostalgia, numa tremenda saudade.

— Mas, depois da noite vem o dia, disse eu, como se quisesse consolá-la do inconsolável. Como foi então a sua aurora, como foi para si o despertar deste dia de hoje, dia de Natal?

— « Veio o dia ; dia sem luz e vida sem vida. Sempre a querer guardar com toda a segurança o mundo dentro em mim continuei a minha alegria fingida. Todos os mimos que recebi e carinhos de pessoas de tanta estima passavam como se não fossem para mim. »

— Alexandrina, não vou abusar da sua extrema bondade, visto serem já passadas as oito horas da noite... No entanto, se me permite uma última pergunta, qual o balanço, se assim posso dizer, deste dia de Natal, como foi ele para si?

— « Ao terminar o dia digo para mim : “Onde passei este dia ? Parece-me que estive morta para Jesus e para todos quantos me rodeiam. Vivi mas não senti a vida. Sofri, mas não foi minha a dor. Não vivi para Jesus, não senti que O amava.”

Não sei dizer melhor e nada digo do que me vai na alma. Ó minha triste vida tão mal compreendida ! »

Assim foi, para a Alexandrina o dia de Natal de 1944.

*****
Escusado é dizer, claro está, e cada um compreenderá, esta entrevista é virtual, visto nunca ter visitado a Alexandrina. Quando ela faleceu, tinha eu apenas 9 ans.

Todavia, as respostas da Beata Alexandrina não o são: foram tiradas dos “Sentimentos da Alma” do dia e ano referidos, ou seja 25 de dezembro de 1944.

Afonso Rocha

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