Não posso convencer-me deste nada que sou...
Um dia de visitas em casa da Beata Alexandrina: foi preciso vir a polícia para canalizar o povo! |
Os meus olhos parece não verem sequer a luz do dia, resultado da cegueira da minha alma. Nada sinto, nada vejo, a não ser a dor da cegueira. Que tormento, que tormento, ó meu Deus! Oro e apagam-se as minhas orações, sofro e foge-me a minha dor; se, por graça do Senhor, algum bem pratico, tudo desaparece.
O tempo passa, vem a Eternidade e eu de mãos vazias. Que luta dolorosa dentro de mim! Como passo o meu tempo? Como passo os dias que Jesus me dá de vida? A dor desaparece e nada tenho que entregar a Jesus. Não sei como enfrentar este viver. Não posso convencer-me deste nada que sou, desta miséria que só Jesus conhece e que a mim causa horror, e ter que viver assim; não posso, não posso. Ver que nada tenho, saber que Jesus me espera e me encontra assim vazia de todo, só cheia d maldades. Se eu me horrorizo e me envergonho de mim mesma, como se não há-de horrorizar e envergonhar Jesus de me ver na Sua divina presença. Ó meu Jesus, ó meu Jesus, eu confio em Vós, não me deixeis cair no desespero, não deixeis o demónio convencer-me de que a minha vida é inútil, que todas as maldades são minhas.
Todos estes dias tenho vivido, esmagada pelo peso da justiça divina; fez-me lembrar a serpente debaixo dos pés imaculados da querida Mãezinha. O peso da justiça divina esmaga-me e eu tento levantar a cabeça e revoltar-me contra a mesma divina justiça. É debaixo deste peso que eu sinto envenenar toda a humanidade; sinto o veneno a cair-me dos olhos, ouvidos, da língua, do tacto; sou só veneno até mesmo no pensamento. Este veneno corre, não tem freio, espalha-se, vai envenenar tudo. Todo o meu ser, toda a terra é veneno. E é sobre este veneno que pesa a justiça divina. Eu não quero aceitá-la, revolto-me e sinto querer envenená-la também. Ó meu Deus, não pode ser envenenar-se aquilo que é divino, aquilo que é Vosso. Sou pior que a serpente, sou veneno mais perigoso.
Que horror eu senti toda a humanidade a beber, a envenenar-se, a mergulhar-se em mim. O coração rasga-se-me de dor, ando como o ladrão fugitivo; quero esconder-me, tenho medo de tudo, tenho medo do Céu, tenho medo de Jesus. Ouço em meus ouvidos, sinto em minha alma o som da trombeta que me chama; Ele vem a pedir-me contas. Que será de mim, meu Deus, como poderei aparecer diante de Vos!
Na tarde de ontem, senti Jesus debruçado sobre a cidade, que representava o mundo e chorava. Estas lágrimas causavam suores, trevas, agonias de alma. A seguir sentia nos meus olhos lágrimas de sangue e dos ouvidos saíam-me gotas dele também. Na cabeça senti os espinhos, via esponja, senti no coração a lança.
Era ainda cedo e eu prostrada no Horto, naquele solo duro que tanto me feria. Rolava nele com aflição. Apresentou-se-me ali o Calvário; estava coberta de iniquidades que atraíram sobre mim a justiça do Eterno Pai; com o peso suei sangue; a aflição era indizível, sentir-me assim esmagada e ver-me, cheia das maiores iniquidades. Veio Jesus, beijou Jesus, deu-se a prisão. Eu caminhei com Ele, com Ele senti o frio, parecia gelar, e o desfalecimento.
(Beata Alexandrina: Sentimentos da alma, 17 de Outubro de 1947 - Sexta-feira)
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