segunda-feira, julho 30, 2007

REVERENDISSIMO SENHOR DOUTOR

Carta XI

« Viva Jesus !
Balasar, 21 de Janeiro de 1934
Reverendíssimo Senhor Doutor :
Tomei a pena na mão para escrever a Vossa Reverência, eram nove horas da noite, mas as lágrimas quase que me cegavam, que mal via para seguir direito, mas tinha razão de sobra para assim fazer, porque se acabaram quase todas as minhas esperanças de Vossa Reverência aqui voltar dar-me alguma consolação espiritual. Ai de mim ! Só Nosso Senhor sabe como eu esperava esse dia feliz ! Tornará o meu bom Jesus a conceder-me esta tão grande graça ? Não Lha mereço ; mas Nosso Senhor que tudo conhece e sabe bem todos os meus desejos, há-de ter misericórdia de mim.
Senhor Doutor, no dia 8 do corrente tive aqui a visita da Candidinha Almeida juntamente com um Senhor Padre que, por algumas palavras, entendi que Vossa Reverência me tinha recomendado a ele. Mais uma vez lhe agradeço a caridade que teve para comigo. Ele consumiu-se para que eu ficasse bem e perguntava-me se eu ficava contente, e eu dizia-lhe que sim. Nem mentia, nem falava verdade : ficava contente porque não tem comparação com o nosso, mas ficava muito triste porque de Vossa Reverência para ele tem uma distância que nem posso comparar. E mais motivos tinha para me causar tristeza, mas fica para lhe dizer, se tiver a alegria de o ver outra vez ao pé de mim, pobre pecadora. Ou Vossa Reverência vai esquecer-me de todo, não voltando a visitar-me e a escrever-me ? Oh ! peço-lhe, por amor de Jesus e de Maria, que isso não pense, porque para mim seria como tirar-me a luz dos meus olhos, o tirar-me a luz da alma. Oh ! como eu preciso de quem me auxilie na santificação, para assim no Céu poder viver mais junto de Nosso Senhor !
Senhor Doutor, já lá vai um mês sem que eu tenha tido umas palavrinhas de Vossa Reverência para meu conforto. Bem sei que tem muito trabalho e muito em que pensar, mas já acho uma demora grande. Será por estar melindrado comigo ? Se assim for, peço que me perdoe, que não fiz nada com o fim de o ofender.
Então como passou o dia de anos ? Eu há meses que tinha este papel para lhe escrever no dito dia 16, juntamente com este santinho que tinha mandado comprar para este fim, a final não escrevi porque estava tão triste e tão desanimada, que não me senti com coragem de escrever. À vista lhe contarei quanto tenho sofrido nestes tristes dias, mas não o esqueci de um modo especial, assim como a minha irmã e a minha mãe. Elas se recomendam muito.
Adeus, até não sei quando.
Peço desculpa por ir muito mal escrita, mas nem sei, nem posso melhor. De saúde continuo na mesma : dias pior, dias melhor, mas sempre fraquinha. Peço para pedir muito a Jesus por mim e também para me abençoar com uma benção muito grande.
Esta que não o esquece em minhas pobres orações.
Alexandrina Maria da Costa ».

* * * * *
Nesta carta, como na precedente, Alexandrina volta a chamar ao seu Director espiritual “Reverendíssimo Senhor Doutor”, “título” que talvez não seja muito do agrado do bom sacerdote, visto que aqui mesmo termina essa “apelação” pomposa e contrária ao espírito humilde do Jesuíta.
Alexandrina sente a partida do seu Paizinho e, o seu coração está triste por causa desta separação ; tem mesmo dificuldades em escrever, por que chora :
“Tomei a pena na mão para escrever a Vossa Reverência, eram nove horas da noite, mas as lágrimas quase que me cegavam, que mal via para seguir direito”.
Apenas cinco meses separavam esta data daquela em que o Padre Mariano Pinho tinha assumido o encargo de dirigir a alma da Alexandrina, mas os seus modos calmos, o seu falar meigo, mas sem pieguices, a persuasão natural ao falar das coisas de Deus e os seus conhecimentos teológicos postos à medida das almas simples, tinham de tal maneira penetrado a alma da “Doentinha de Balasar” que ver-se privada de tão precioso Cireneu, lhe causou uma pena muito grande, sobretudo sabendo que agora seria muito mais difícil encontrarem-se de outra maneira que por intermédio de cartas, por isso ela pensa que “tinha razão de sobra para assim fazer, porque se acabaram quase todas as minhas esperanças de Vossa Reverência aqui voltar dar-me alguma consolação espiritual. Ai de mim !”.
Ela voltará a encontrá-lo em Balasar, porque o Padre Pinho será diversas outras vezes convidado a pregar tríduos na periferia daquela aldeia e virá visitar a sua dirigida. Mas isso, ela não o sabe nem o adivinha.
“Só Nosso Senhor sabe como eu esperava esse dia feliz ! Tornará o meu bom Jesus a conceder-me esta tão grande graça ?”
A sua humildade vem de novo à tona e hei-la conformada com a vontade do Senhor, reconhecendo no entanto que não merece tal dádiva.
“Não Lha mereço ; mas Nosso Senhor que tudo conhece e sabe bem todos os meus desejos, há-de ter misericórdia de mim”.
De vez em quando a “Doentinha de Balasar” recebe visitas, não só dos conhecidos e amigos da aldeia ou aldeias vizinhas, mas também pessoas que tendo ouvida falar dela desejam encontra-la e conversar das coisas de Deus.
Aqui tratam-se de pessoas que conhecem o Padre Pinho, como se pode verificar pelas palavras que a Alexandrina escreve :
“Senhor Doutor, no dia 8 do corrente tive aqui a visita da Candidinha Almeida juntamente com um Senhor Padre que, por algumas palavras, entendi que Vossa Reverência me tinha recomendado a ele”.
Não sabemos qual tenha sido este sacerdote, porque a Alexandrina não o nomeia, mas o que certo é que “ele consumiu-se” para que ela ficasse bem e perguntava-lhe se ela ficava contente, e ela dizia-lhe que sim.
Mas este dizer que sim tem explicação : “Nem mentia, nem falava verdade : ficava contente porque não tem comparação com o nosso, mas ficava muito triste porque de Vossa Reverência para ele tem uma distância que nem posso comparar”.
No entanto a lembrança de lá o enviar a visitar a sua dirigida não fica sem agradecimento. A Alexandrina escreve : “Mais uma vez lhe agradeço a caridade que teve para comigo”. E aqui ela é verdadeiramente sincera.
Outros pormenores há que a Alexandrina não pode revelar por carta, o que muitas vezes acontecerá, mas fá-los-á de viva voz, quando voltarem a encontrar-se :
“E mais motivos tinha para me causar tristeza, mas fica para lhe dizer, se tiver a alegria de o ver outra vez ao pé de mim, pobre pecadora”.
Mas, de repente, como um relâmpago, uma dúvida dolorosa lhe atravessa o espírito e ela pergunta :
“Ou Vossa Reverência vai esquecer-me de todo, não voltando a visitar-me e a escrever-me ?”
Depois, como se se encorajasse a ela mesma ou quisesse conjurar a sorte, continua :
“Oh ! peço-lhe, por amor de Jesus e de Maria, que isso não pense, porque para mim seria como tirar-me a luz dos meus olhos, o tirar-me a luz da alma”.
Mas não pode ser, não pode ser porque precisa de ajuda, precisa “de quem a auxilie na santificação, para assim no Céu poder viver mais junto de Nosso Senhor !”
A instalação do Padre Mariano Pinho em Lisboa, a sua adaptação ao cargo que lhe fora confiado, não lhe deixavam muito tempo para escrever, sobretudo se temos em conta que a Alexandrina não é a sua única dirigida, por isso tarda em responder às missivas da “Doentinha de Balasar”. Ela queixa-se desta situação, mas compreende que ele não tenha muito tempo livre :
“Senhor Doutor, já lá vai um mês sem que eu tenha tido umas palavrinhas de Vossa Reverência para meu conforto. Bem sei que tem muito trabalho e muito em que pensar, mas já acho uma demora grande”.
Esta demora inspira-lhe também um receio, receio que em qualquer coisa o tenha ofendido e que ela agora esteja a procurar esquecê-la...
“Será por estar melindrado comigo ? Se assim for, peço que me perdoe, que não fiz nada com o fim de o ofender”.
O dia 16 de Janeiro era o dia aniversário do bom Jesuíta; Alexandrina nunca mais esquecerá esta data. O padre Pinho acabava de festejar os seus quarenta anos ; era portanto um homem relativamente novo e cheio de boa vontade e de coragem, mesmo se sujeito a pequenas enxaquecas motivadas sobretudo pelo trabalho que infatigavelmente, dia após doa levava a cabo.
“Então como passou o dia de anos ? ― pergunta a Alexandrina. Eu há meses que tinha este papel para lhe escrever no dito dia 16, juntamente com este santinho que tinha mandado comprar para este fim”.
Mas, “a final não escreveu porque estava tão triste e tão desanimada, que não se sentia com coragem de escrever”.
Muito mais tem para lhe dizer de quanto sofre não só desta separação, mas também outros sofrimentos inerentes à sua doença e bem mais... que ela voluntariamente aqui não exprime.
“À vista lhe contarei quanto tenho sofrido nestes tristes dias, mas não o esqueci de um modo especial, assim como a minha irmã e a minha mãe. Elas se recomendam muito.
Adeus, até não sei quando”.

Este adeus não termina a carta : ela ainda tem mais alguma coisa a dizer :
“Peço desculpa por ir muito mal escrita, mas nem sei, nem posso melhor”.
Quanto à saúde ela diz, um pouco desapontada : “dias pior, dias melhor, mas sempre fraquinha”.
E, desta vez, para terminar, pede, como de costume, que ele ore “muito a Jesus por ela e também para a abençoar com uma benção muito grande”.
E assina depois, como as grandes almas :
“Esta que não o esquece em minhas pobres orações.
Alexandrina Maria da Costa”.

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