Passaram-se uns dias e noites sem que o demónio viesse com os seus ataques atormentar-me, embora, por vezes, tentasse assaltar-me. Mas sempre veio com três assaltos seguidos. Não sei como ele se fez senhor de todos os meus sentidos; olhos, ouvidos, tacto, sentidos. O meu coração era dele; era dele todo o meu ser. Principiaram os convites para o mal, as maldades, por fim a luta. Pude dizer a Jesus e à Mãezinha que me valessem, que não queria pecar, que era a Sua vítima. Não pude benzer-me, nem pegar, para as mãos no meu crucifixo. Parecia-me que ele conseguia de mim quanto queria e, de um combate para o outro, eu ficava presa a ele, presa pela malícia, presa pela maldade. Compreendi alguma da sua malícia. Por mais esforço que fizesse para não ouvir o que ele me dizia, tinha que ouvir. As bagadas de suor corriam; o coração batia aflitivamente. Não podia libertar-se dele. A voz de Jesus e a um sinal de retirada, ele fugiu. Jesus dizia: aparta-te, maldito, para o lugar que tu escolheste; já basta; deixa-a, que é a minha vítima. Fiquei libertada e pude tomar a minha posição. Mas ele, ainda ao longe, tentava seduzir-me e prender-me novamente a ele. Fiquei na dor e no receio de ter pecado. Só depois de Jesus ter vindo ao meu coração, sosseguei mais. Ele deu-me a Sua doce paz.
Ontem, perto do cair da tarde, vi dois rostos unidos: o de Jesus e o de Judas, que deu o beijo traidor em Jesus. Vi estes rostos, e eles estavam unidos ao meu. Foi tal a amargura que senti com aquela visão. Um rosto tão belo e tão puro e outro tão cruel e parecido com Satanás, que me levou ao Horto, no qual principiei a ver e a sentir Jesus, ora de uma forma, ora de outra. Quando Ele mais precisava dos Apóstolos, os seus amigos, companheiros de tanto tempo, menos os tinha, maior era a sua despreocupação; dormiam sossegados, a bom dormir. Jesus sofria com este afastamento, mas estava contente por eles dormirem. Prostrado por terra, em agonia, banhado em sangue, levanta-se depois. E eu sentia-O na minha alma, gravado bem profundamente, os Seus cabelos ensopados e as gotas do Seu divino sangue a correrem ainda mais, muito mais. Sentia os Seus divinos olhos abertos, levantados ao Céu. E em meu coração sentia os Seus lábios a repetirem, uma e outra vez: Pai, Pai, Pai, afasta-Me este cálice, se é possível; mas faça-se a Tua vontade; Eu quero morrer para dar a vida. Nestes momentos Jesus tinha a formosura de Jesus. A Sua calma estava jubilosa de tanto sofrer. Que alegria a de Jesus, por dar a vida por nós! Veio Judas de encontro ao Horto, ali beijou o rosto inocente, e, logo, todos os soldados caíram por terra. Jesus, entregue aos seus maus-tratos, mais ainda do que até ali, se viu dos seus amigos abandonado; fugiram, deixaram-No sozinho.
Hoje, pela manhã, caminhei para o Calvário. Por mais que eu queria desviar os sofrimentos de Jesus do meu pensamento, não por não querer pensar neles, mas sim para me livrar de ilusões, prende-se a eles o meu coração; desvia-se deles o espírito, mas o coração cola-se, a alma tudo sente. Caminhei com O meu Jesus; parecia-me caminhar, a passos de gigante. No meu desfalecimento, o Calvário não chegava, mas vinham-me, de encontro ao peito, todos os sofrimentos dele; feriam-me o coração. Quase sem vida cheguei ao cimo. Pregada na cruz, ondas de sofrimentos, vindas de mares e mares sem fim, levantavam-se sobre a cruz. Jesus, numa sede insaciável, bebia incessantemente, e, como num eterno abraço, as estreitava. Com que doçura Ele o fazia, sabia e via muito bem que Sua morte dava a vida; que a Sua dor era um maná, o bálsamo fecundo, a vida das almas. A esta bondade e amor de Jesus, veio levantar-se o mundo em grande revolta e ódio; parecia cair sobre a cruz uma chuva de instrumentos, que dilaceravam os restos das carnes de Jesus. Era o mundo lodacento, apodrecido, a atirar contra o sol mais brilhante a sua podridão, para encobrir seus raios. Eram estes os sentimentos da minha alma. Que sentimentos tão profundos! Jesus, ao ver que o mundo desperdiçava o Seu sangue divino e a tantos não aproveitava a Sua morte, agonizou, e eu com Ele.
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(Beata Alexandrina: “Sentimentos da alma”, 30 de Maio de 1947 - Sexta-feira)
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