Eu era a mesa, eu era o pão e o vinho
A Beata Alexandrina "assiste" à Santa Ceia
— Ai, meu
Jesus, o que hei-de eu fazer, o que posso eu fazer?
Sou mãe que chora
tanto, mas lágrimas de sangue que banham toda a humanidade. Não posso resistir
a tanta dor, não posso sossegar, quero salvar o mundo, quero sofrer tudo, quero
dar por ele a vida. Numa hora em que as ânsias eram insuportáveis, levantei com
custo os meus olhos para Jesus e disse-lhe:
— Jesus,
Jesus, ai o mundo, ai o mundo, quero salvá-lo. Deixai-me entrar no Vosso Divino
Coração com todos os que me são queridos; deixai-me entrar com todos os que me
pertencem e às minhas orações se recomendam; deixai-me entrar com todos os
sacerdotes e pecadores endurecidos; deixai-me entrar com todos aqueles que me
têm ofendido; deixai-me entrar com a humanidade inteira; que ninguém fique fora
do Vosso Coração Divino para dele passarmos à nossa Pátria, ao céu que para
todos criastes. Quero amar-Vos e louvar-Vos com todos eternamente.
Continuam os meus
medos para com as pessoas a quem mais estimo e para com Jesus e a Mãezinha
querida. Que horror! Não só tenho medo de Jesus, medo que muitas vezes não me
deixa levantar para Ele os meus olhos, mas mais ainda: fujo d’Ele, não quero ouvi-lo,
e até me parece que não queria que Ele existisse. Os crimes, o lodo de que
estou coberta não podem ser vistos pelos Seus olhos divinos. Estou sempre a ser
açoutada com as mesmas varas de espinhos; descarregam-nos sobre mim com toda a
crueldade. Nada existe em mim que não seja ferido por eles. E a morte
avizinha-se, e os homens não se apressam a dar-me o meu paizinho. Que tristeza!
Não sabem o que é a dor. Não sabem quanto valem as luzes e conforto para uma
alma.
— Perdoai-lhes,
meu Jesus, eu espero em Vós, confio nas Vossas promessas divinas.
Durante esta
noite, não sei se ainda era ontem ou se já pertencia a hoje, veio o demónio,
veio desesperado, veio com todas as suas maldades, atormentou-me fortemente.
Pegou o fogo e deixou em mim as suas manhas e, para disfarçar que não era ele,
pôs-se ao largo. Só depois de eu muito lutar e de me parecer que tinha ofendido
o meu Jesus tão gravemente é que ele se aproximou novamente a cobrir-me de
insultos e a dar-me a afirmação de eu ter pecado. Estava num lago de suores na
posição mais violenta que podia estar. Debaixo de mim um medonho abismo e
muitos demónios em forma de esqueletos e de animais ferozes a atormentarem uma
massa que lá estava. Ó meu Deus, que horror! Não podia falar nem gemer nem dar
o mais pequeno movimento ao meu corpo. Pensei:
— Se me não
valeis, meu Jesus, morro aqui. Valei-me, valei-me, vinde em meu auxílio.
Serenou tudo.
Passados uns momentos, ouvi Jesus a dizer:
— Anjo
celeste, anjo bendito, anjo que eu escolhi para guardares, guiares e amparares
a minha vítima amada. Levanta-a, leva-a ao seu lugar.
No mesmo
instante, sem me causar o mais pequeno incómodo, fiquei na minha posição. Mas
logo em dúvidas e grande agonia. Jesus esteve em silêncio uns momentos e depois
continuou:
— Não
pecaste, minha filha: reparaste, consolaste, honraste o meu divino coração. Para
as almas não sofrerem no inferno o que naquele abismo viste é que exijo de ti
esta reparação. É fogo de vícios, são paixões, é a carne. Para reparar nesta
matéria, só uma virgem inocente, só um enchente de fogo de amor pode apagar o
enchente de vícios lodaçais. Tu és o brilho e encanto dos meus olhos. Sossega,
sossega, não pecaste. Dá ao meu querido Padre Humberto a abundância do meu
amor. Diz-lhe que estou com ele quando ora, quando trabalha, quando guia e
encaminha para mim a tua alma. Dá-lhe por mim os meus agradecimentos.
Neste colóquio
com Jesus, não tive medo d’Ele, mas logo depois voltei a sentir todo o meu
martírio. De manhã cedo, principiei a sentir que Jesus chorava dentro em mim.
Eu era a cidade de Jerusalém e era Jesus. Eu era o amor e a ingratidão. Do meu
coração saíam para a cidade os mais doces e ternos olhares; eram olhares de
chamamento, olhares de compaixão. Mas oh! o que eu via sair dali, que revolta
contra mim. Ao cair da tarde, senti-me então reunida com os amigos. Ó meu Deus,
o que se passou, que quadros tão diferentes. Eu era Jesus e contra o meu
coração sentia inclinar-se alguém e eu era esse alguém. Eu era a mesa, eu era o
pão e o vinho; eu era o cálice onde ele era deitado; eu era as taças onde se
serviam os alimentos; eu era Judas, era tudo. Eu era a doçura e mansidão de
Jesus; era o desespero e traição de Judas. Que noite, que santa noite, a maior
de todas as noites, a noite do maior milagre, do maior amor de Jesus. O Seu
Divino Coração estava preso àqueles que Lhe eram tão queridos. Para poder
partir, tinha de ficar entre eles, para subir ao céu, tinha de ficar na terra;
assim o obrigava o Seu amor divino. Sinto necessidade de esclarecer todas estas
cenas, mas não posso, não sei. O olhar esgazeado do mau discípulo ficou gravado
em meu coração e todo aquele silêncio profundo de saudosas despedidas. A
amargura da minha alma não podia subir mais alto. E, para afirmar mais esta
amargura, vieram os sofrimentos da terra causados. Juntei a dor ao sacrifício e
quantas vezes em espírito, com os olhos fitos no céu, ofereci ao trono divino o
cálice da minha amargura. (Alexandrina Maria da Costa: Sentimentos da alma de 8
de Março de 1945)
Sem comentários:
Enviar um comentário